Arte e Psicanálise – Aprendendo a Desaprender

Uma didática da invenção
Manoel de Barros

I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II

Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.

Melissa Coutinho
Trabalho apresentado na XV Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), seção Bahia em 2014.

Ao longo da história, as artes são parceiras do humano, traduzindo, transmitindo, abrindo espaço ao novo. Sua conceituação é diversa e ampla, e se modifica ao longo do tempo.

A arte é controversa, é plural, é surpreendente. Ela intermedia a existência do humano, “trata” transformando sua realidade e marcando sua presença através de um produto, a obra, que expressa uma vivência subjetiva. O artista é um embaixador do inaudito, do imaterial, antecipando e emancipando realidades outras.

A ela, está agregada a liberdade, que insufla a criação e que traz na sua construção, uma certa transgressão e descompromisso com qualquer formalização imposta.

Na história da construção da Psicanálise, Freud modificou algumas vezes os termos que a designava. No começo chegou a utilizar “análise psíquica”, “análise histérica”, “análise psicológica”, mas acabou por assumir o termo Psicanálise (psico-análise) para sua teoria. Não por acaso ele abandonou o sufixo logia, e optou por manter análise (separar). Também a escolha da palavra psico trás em si um direcionamento. “Psique é uma palavra grega que se traduz por alma (Seele). ‘Tratamento psíquico’ quer dizer, consequentemente, tratamento da alma.”… “ ‘Tratamento psíquico’ significa antes: tratamento originado na alma (vom Seele aus) …” .(Freud 1890) 

Arte e Psicanálise se relacionam. Não se trata de aplicar a psicanálise à arte, mas antes de aplicar a arte à psicanálise. “Estando o dom artístico e a capacidade de trabalho intimamente ligados à sublimação, devemos confessar que a essência da função artística permanece, também para nós, psicanaliticamente inacessível”. (Freud 1910) Seria possível pensar que uma análise do processo artístico, pode contribuir para uma leitura do processo psicanalítico no fazer da clínica?

Segundo Azouri, Lacan em 1978 chegou à conclusão sobre a transmissão da psicanálise que “A Psicanálise é intransmissível. Cabe a cada analista reinventar a Psicanálise. Cabe a cada analista reinventar a maneira de manter viva a Psicanálise” (p.27). Sobre esse aspecto, Azouri diz ainda que:

“Assim, esqueceu-se grande parte da dimensão criativa da análise, e Lacan, com o passe, procurou reencontrar o caminho de uma reinvenção possível, apostando no testemunho do analisando sobre a relação opaca com a origem e o vazio que se vive no fim de uma análise”. (p. 29)

Dito isso, é possível fazer uma reflexão sobre conceitos psicanalíticos e formulações sobre o fazer artístico, que abarcam o processo pelo qual o intangível toma forma, se materializa, como um produto único. É então possível pensar em uma dimensão artística no processo da Psicanálise clínica?

“Toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio”. (Lacan 1959-60) Das ding em Freud, o furo em Lacan, não pode ser representado “por si mesmo”, mas sempre por outra coisa. Nesse caso a representação é uma operação que a arte faz. De alguma forma ela organiza, bordeia esse vazio, através de suas representações.

A Psicanálise também trabalha com o vazio, através das operações do inconsciente nas estruturas clínicas. A metáfora do vaso é interessante, na medida em que ela se faz, em torno do vazio.

Segundo Regnault: “Está provado que o vazio não tem somente uma função espacial, mas também simbólica. Ele é da ordem do real, e a arte utiliza o imaginário para organizar simbolicamente esse real. Ele está entre o real e o significante” (p.30).

No início do trabalho, transcrevi uma parte de um poema de Manoel de Barros. Allain Didier-Weill descreve o poeta como “…um tradutor que consegue fazer com que o ilimitado da mensagem musical se encarne no limite da imagem apolínea: a palavra do poeta é, assim, o significante pelo qual se podem amarrar o real da música e a imagem especular”. (p.21)

A preservação do único, nesse processo de apreensão e a experiência íntima do inefável, é uma tradução que trás em si mesma, uma síntese.

A obra de arte se impõe e sobrevive ao saber científico, esse, um saber anônimo, sem sujeito, que pode ser percebido pelo olhar de onipotência sobre o homem/sujeito.

Nesse ponto arte e Psicanálise também se tocam. Assim como há uma similaridade na produção. A produção do artista é única, intransmissível – a não ser o que se apreende dela. É uma invenção, e reinvenção de si mesmo.

Na análise, através da livre associação, do falar livremente, a produção do analisante é única, uma invenção atualizada a cada palavra, que promove ao final do processo, uma reinvenção do sujeito, um saber fazer com isto.

No curso de uma análise, se está submetido ao enigma, a esse poder evocativo que faz mover, que transporta de um ponto a outro, de um estado a outro. Como uma obra de arte faz, sem coagir, ela captura quem a deixa capturar, e retirando o sujeito de uma dimensão, por assim dizer, temporal, tempo cronológico, veicula-o em um sentido outro através do tempo lógico. E após esse processo algo se torna diferente, não é mais o que era antes.

Vê-se então a arte e Psicanálise, como mediadoras de um real, através de sua presença no processo artístico e psicanalítico, dá sentido ao que é possível, mas também inclui e sustenta o que está para além do sentido.

A obra de arte, assim como o processo analítico, faz efeito, no sentido de causar efeito, na medida em que acontece como resposta, fazendo aparecer uma questão no sujeito, que já o habitava sem que ele soubesse.

A arte pode ser conceituada como uma técnica, como um processo criativo que se dá a partir da percepção e interpretação do mundo subjetivo do artista, com a criação de algo novo, que expressa a realidade interior do criador, e que responde a um problema/enigma. Por outro lado, o processo de analise pode ser compreendido como um processo embasado em uma técnica que possibilita à pessoa que se submete a esta, um processo criativo, na medida em que é livre na sua criação/fala, para construir sua questão e responde-la, sendo interprete de sua história, fazendo advir o sujeito, um novo sujeito.

É possível dizer que a clínica psicanalítica é um processo transformador e “subversivo”, que segue uma lógica própria, a do inconsciente, assim como a criação artística, e que ambas, de alguma forma criam um produto ao final de um processo. Ambas “funcionam” como mediadoras do real, desconstruindo e construindo, ao longo do tempo algo novo. Produto esse, que trás em si uma hombridade, uma especificidade e um valor, únicos.

A maneira como cada um tece o seu caminho, faz a sua obra, na direção deste “encontro” – com sigo mesmo, pode ser um testemunho de passe, mas o é também de vida.

Após uma pessoa se submeter e passar pelo processo de análise, algo estará diferente, algo será criado, uma obra, uma obra de arte talvez, mas com certeza, uma obra de vida.

Referências Bibliográficas:

  1. Barros, Manoel. Livro das Ignorãças. Rio de Janeiro e
    São Paulo: Record, 1993.
  2. Freud, Sigmund (1908) “Escritores criativos e devaneio”, v.IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
  3. Freud, Sigmund (1910) “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”, v.XI. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
  4. LACAN, Jacques. (1959-60) O Seminário, livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
  5. LACAN, Jacques. (1964) O Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
  6. REGNAULT, F. Em torno do vazio: a arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001.
  7. RIVERA, T. Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
  8. DIDIER-WEILL, A. (AZOURI, C; RABANT, C; JORJE, M.A.C.) Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contra Capa. 2014.
  9. http://pt.wikipedia.org/wiki/Arte

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