Dor – qual sintoma?

Melissa Coutinho
Trabalho apresentado na XIV Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), seção Bahia em 2013.

A dor sempre foi uma das grandes questões da humanidade. Desde a Grécia antiga até a atualidade é um tema instigante, provocativo e que escapa a uma compreensão total desse fenômeno.

As dores crônicas persistem, mesmo após a cura da lesão ou do fato que a desencadeou, não tendo, portanto, uma finalidade biológica. É uma experiência complexa, com interface multidisciplinar, pois ao mesmo tempo em que apresenta componentes físicos, também traz à tona a subjetividade, o que há de único no sujeito, seu traço mais pessoal em sua experiência no corpo.

Falando em termos de números, um estudo transversal realizado em Salvador e publicado em 2009 na Revista Pain, feito com indivíduos com idade igual ou superior a 20 anos, constatou a presença de dor crônica em 41,4% da população.

A dor crônica é um desafio do século XX.

Ela prejudica a funcionalidade e as atividades da vida diária de maneira geral, alterando o papel social e a vivência subjetiva do sujeito.

A clínica médica da atualidade tende a trazer um discurso fragmentado, em que experiência e representação, corpo e linguagem, são vistas como entidades separadas.

Talvez seja necessária uma releitura sobre o tratamento e manejo da dor, que inclua olhar um olhar amplo e sistêmico.

A clínica psicanalítica faz frente a esse desafio, tecendo uma rede conceitual, que se sustenta, e que elabora através do que emerge no corpo.

Propõe Lacan que a expressão da incidência da linguagem do sujeito se relaciona com o corpo, e é vivenciada unicamente quando no corpo, encarnada.

É um tema desafiador, visto que tem como base o enlaçamento do campo abstrato e subjetivo, ao campo concreto, dos corpos. Enlaçar teorias e perspectivas distintas, que tem fundamentos e objetivos, às vezes até contrários, é um trabalho hercúleo, mas é justamente aí que reside o seu valor, criar um espaço de interface, permitindo uma interlocução de saberes.

A prática clínica provoca constantemente sobre a questão da relação entre o funcionamento psíquico e neurofisiológico do corpo. Continua existindo certa dificuldade de criar junção entre as áreas de conhecimento psíquico e biológico, pois surge um hiato entre elas. Acredito que sempre surgirá. Mas, diante da alta prevalência da dor crônica e da complexidade dos mecanismos neurobiológicos envolvidos, se faz necessário um maior aprofundamento no que diz respeito à compreensão desse fenômeno. A medicina moderna é confrontada, a neurofisiologia não dá conta de explicá-lo em sua totalidade, pois esbarra muitas vezes na ausência de uma causa orgânica, ou na incompreensão da dinâmica que esse quadro assume.

A descrição de um sintoma, dessa forma, pode passar a ser entendida como um signo, uma expressão única, simultaneamente física e psicológica, que transgride, e questiona sobre o dualismo mente-corpo, e convoca um novo olhar sobre o corpo, sobre essa dor incorporada que se impõe, e que muitas vezes não se oferece à decifração.

Assim, através do campo psicanalítico, o corpo pode ser pensado e estudado sob o ponto de vista do Imaginário, como imagem; do Simbólico, marcado pelo significante; e do Real, um corpo como sinônimo de puro gozo.

A dor como o encontro com o Real, com o que é impossível de se dizer, com o que não foi simbolizado. Nesse ponto se coloca uma questão fundamental no campo da dor, o gozo, que se insere no registro do Real.

O paciente com dor relata constantemente que a dor lhe é estranha, desconhecida, mas que também insiste, sempre presente. Inferimos a relação da dor, com esse Real, que insiste em não se inscrever, em não se permitir a decifração, mas que se coloca. Nesse sentido, é possível abrir o espaço para se falar sobre a dor, e lhe dar significação, criando a possibilidade da inscrição da dor no registro do Simbólico, tendo como resultado terapêutico, a menor incidência de energia pulsional não simbolizada sendo direcionada para o corpo, efeito que aparece na melhora dos índices de dor.

Porém essa forma de compreensão ainda assim é incompleta. Para aprofundar sobre esse assunto, é preciso esclarecer mais a respeito do conceito de sintoma, pois a dor é um sintoma. Mas qual sintoma?

Na clínica, o conceito sobre sintomas é questionado todo o tempo. Não há uniformidade. Não há homogeneidade. Não há uma única resposta.

No primeiro tempo (anos 50), Lacan ressalta a dimensão simbólica do sintoma, localizando-o na série das formações que o inconsciente produz a partir do seu trabalho. Como o sonho, o chiste, o lapso, o ato falho, enfim toda a série de fenômenos que Freud explica pelo retorno do reprimido, como insistência dessa memória simbólica que supõe o trabalho do inconsciente. É o chamado sintoma – Metáfora.

Ele propõe duas versões para essa abordagem simbólica do sintoma.

Na primeira versão: O sintoma é um significante de um significado reprimido da consciência do sujeito. Por isso supõe um sentido, um significado ignorado porque está sofrendo, que eventualmente pode ser revelado pela interpretação analítica.

Essa versão de sintoma é claramente reconhecida na clínica, pois gera uma resposta terapêutica de redução e até desaparecimento completo da dor.

Na segunda versão, aparece o sintoma-gozo. Desde os tempos de Freud, ele se deu conta da limitação da perspectiva da psicanálise de “arte interpretativa’, e passou a se ocupar ao que mais resistia na análise. Não só a resistência do paciente, já clara para ele, mas que no próprio sintoma resistia à interpretação. Usando a terminologia Lacaniana, há algo de Real no sintoma que excede a interpretação simbólica, e que esta não pode alcançar. Ainda assim, é possível notar a coerência proposta entre o sintoma e o Inconsciente: tanto o inconsciente como o sintoma, estão estruturados como linguagem. Não poderia ser diferente, porque aqui, ele é pensado como seu produto: uma formação do inconsciente.

No último ensino de Lacan há uma nova versão sobre o sintoma. Não há o “sintoma – Metáfora”, explicado na primeira versão, do qual se desprendem efeitos de sentido ou significação, mas o “sintoma – Letra”, com seus efeitos de gozo. O sintoma em sua natureza de gozo, se bastando a si mesmo, e que não passa pelo campo do Outro. Lacan destaca na relação do sintoma com o gozo, sua dimensão de Real, onde o sintoma revelará a sua relação com o Gozo, que é o Real na medida que está excluído. Em RSI ele chama de sintoma ao que vem do Real, por isso não se trata de dar sentido, mas de despojar o sintoma de sentido. Antes de RSI, Lacan propõe que o sintoma vem do Real: supõe um avanço do Real no Simbólico. Em RSI, ele modifica e diz que o sintoma é o efeito do Simbólico no Real, e se produz no campo Real.

Temos assim a segunda concepção Lacaniana de sintoma, que termina por ser definido como uma função, uma letra, a letra de Gozo, que consiste então em “traduzir” o Um do Inconsciente por uma letra. Quando se extrai o Um, se escreve a Letra de Gozo.

Se o sintoma-Metáfora supõe a articulação mínima entre S1-S2, o sintoma-Letra vem mostrar precisamente a distância que se impõe entre a noção de Significante, que classicamente representa um sujeito para outro significante. É dizer que no nível da Letra, se trata de S1 só. O Um que se exila, que se extrai do Inconsciente, formando a Letra do sintoma.

O sintoma é assim esse Um, arrancado do Simbólico que passa ao Real. O Um fora do Inconsciente: é por isso que o sintoma Ex-siste do Inconsciente. Desse modo, ele é realização, e não simbolização. A Letra do sintoma supõe uma fixação, de Gozo nessa extração, e é isso que determina sua repetição e resistência, e é justamente por essa fixação de Gozo, que se destaca o sintoma-Letra.

Para além dessas duas definições, existe uma terceira, o Sinthome. Temos então o Sinthome, o Síntoma-Metáfora, e o Síntoma-Letra. No seminário 23, Lacan propõe a seguinte diferença: se o sintoma Letra de Gozo corresponde à dimensão Real do sintoma, veremos em seguida que o Sinthome não é Real, nem Imaginário, nem Simbólico.  Não se confunde com os três registros, mas é precisamente, aquilo o que enlaça esses registros, é exatamente uma quarta consistência, o quarto nó que é irredutível. É justamente por sua condição de quarto nó que se distingue o Sinthome da Letra de Gozo do sintoma.

No ensino de Lacan, pode-se perceber o caráter evolutivo da teoria, onde muitas vezes parece haver contradição, porém na verdade são versões que se complementam, para poder se pensar sobre algo tão complexo, como ser humano, e que existe grande profundidade teórica para se tentar dar conta – dos fenômenos do humano.

A clínica da atualidade nos impulsiona a pensar e produzir, e continuar avançando na teoria.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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  5. LACAN, J. O seminário livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999[1957-1958].
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  8. LACAN, J. O Seminário livro 22: RSI. Não publicado no Brasil: Ornicar? n° 4, ano de publicação: 18 /02/1975 [1974-1975].
  9. LACAN, J. O seminário livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005 [1975-1976].
  10. MILLER, J-A. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2011.

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